terça-feira, 5 de junho de 2007

Sofia – Parte III

Já falei sobre o dia em que Sofia sentiu ciúmes? Ah. Não me venha com esse papo pós-moderno de novo. Ela sentiu ciúmes, sim. Enrubesceu-se tanto que ficou quase como quando nos beijamos escondidos à meia luz da 1º de Março. Eu me lembro bem, era uma segunda-feira. Tentamos umas três exposições, mas nenhuma parecia estar ainda aberta ou em cartaz. Eu comprei umas poesias na porta de uma delas pela metade do preço e por pura piedade. Não conseguiria admitir empatia pelo rapazinho de barba, mesmo se os versos dele valessem alguma coisa. Fomos até o fim da rua estreita de pedras portuguesas e tomamos três ou quatro copos de Salinas.

Aqui estou eu emendando um assunto no outro. Falava sobre o rubor na pele branca de Sofia. Ela tinha os olhos tensos; o olhar era praticamente o mesmo – surpreendi-me. Foi a primeira vez, desde as juras de amor, que eu me senti desconfortável ao seu lado. Não sei o que temia, ou se tremia – não me lembro. Pensei em levar-lhe uma lembrança. Lembrei que Ovídio, latino de 43 a.C., registrou em um de seus romances, a título de premissa principal, que um infrator não deve se mostrar culpado além do suficiente. Sabe-se lá se ele estava ou continua certo. Todo mundo entende que, em nosso tempo, delegam razão a Freud, gregos e liberais.

Por via das dúvidas, concedi a Sofia meu mais terno abraço o tempo que bastou para que ela se convencesse da gaze e do esparadrapo. Eu cobri sua ferida infantil com beijos e merthiolate que não arde. Ela se escondeu na caverna, bichinho do mato no inverno. E ainda fez bico! Olha, mas vejam só. Então eu disse, como dizia o meu avô, que iria pôr o seu bico no feijão! De manhã, ela saiu cedo do edredom esconderijo e me trouxe café na cama. Sofia aborreceu-se com a minha lentidão ao acordar. Resolveu descontar no cinzeiro. Eu já disse que Sofia fica linda quando aborrecida?

...

Já havia enviado a última carta à Cecília. Sinceramente, não faço idéia do que me ocorreu. Conheci seu atual namorado, um cara bacana. Tirei foto com a nova família (eles vão se casar) e parecia tudo tão normal. Eu poderia me sentir como Sofia cantando baixinho Comfortably Numb depois da notícia.

Triiiiiiiiiiim: "Sofia, liguei para Cecília e disse que a amava como quem tem o amor no CTI. Ela descartou a metáfora e disse o mesmo. Estava dirigindo, tinha uma reunião em seguida".

Desliguei o telefone e chorei bastante – o que não precisa ser dito a ninguém, OK? – enquanto ia esfaqueando o cordão umbilical à lâmina cega. Embora hoje eu consiga confessar um quezinho de tesão pela tortura, resolvi, quiçá para variar um pouco, por cortá-lo (o cordão) logo e rasteiro. Disparei contra Cecília uma rajada de verdades incontestáveis e de blablabá. Permiti-me, afinal, desfazer-me da condição de atalho. Foi drama, gozo, chama e um monte de sacanagens. Não mentiria se arriscasse dizer que não me sinto triste, nem com raiva, ou com medo um segundo sequer. Emocionei-me, corpo e alma, em acenar e jogar arroz. E não é lindo? Brega, terrivelmente brega, porém lindo.

Mantenho-me coadjuvante narrador. Desfiz-me em verdade e agora me reconstruo ao lado de Sofia, porque assim ela deseja e porque a minha vontade é essa também. Sofia quer dominar o mundo. Ela quer o meu coração. Meu coração, por sua vez, é bom. E tudo o que é bom custa caro. Ora, mais quanta bobagem! Eu só quero ser escritor, fumar o meu cachimbo, salvar a cobiçada, a mal tratada vida – coitada – das tentativas que não dão certo, do que eu não quero por perto, do desleixo e dos meus vícios. Eu sou refém dos meus desejos. Se toda a recompensa para poeta é divina inspiração, nem sempre o fim é assim tão duro. "Seja generoso", costumava dizer um querido professor finado, "Pense bem no que vem antes do THE END".

4 comentários:

Helio Lambais disse...

Maravilhoso... adorei a parte 3... gosto de vir aqui !

Bisous

Anônimo disse...

"O principezinho ficou mais vermelho. Não respondia nunca às perguntas. Mas quando a gente fica vermelho, não é o mesmo que dizer "sim"?"

Tentei com Gabriel García, não deu certo, mas como todo mundo tem uma teoria sobre o rubor alheio, não perco a oportunidade.

Dessa vez, "O Pequeno Príncipe". O livro favorito de qualquer "Pequena Miss".

Gal disse...

entao, eu ja fiz uns 200 comentarios fofos, bem humorados, inteligentes e sagazes nesse post mas eles nao apareceram.meu navegador dá pau nas pop ups todas. então, desisti de escrever algo legal e só comento que eu li e gostei.ok?
(provavelmente vai dar pau mesmo)
um beijo

Gal disse...

funcionou!!!
nem creio

 
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